sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

o pato, a morte e a tulipa

Este será o último livro que resenharei este ano. Li ainda em julho ou agosto, não me lembro mais, todavia decidi ainda naquela época que deixaria este pequeno livro para ser resenhado por último. Acontece que neste ano vários amigos e/ou conhecidos próximos morreram. Alguns eram mortes anunciadas, estavam doentes há tempos e sinalizando este desfecho. Outros se foram mesmo numa surpresa. Não posso dizer como Flaubert que "meu coração está transformado em uma necrópole", pois minha relação com estes amigos não era exatamente íntima, mas fiquei realmente aborrecido com estas perdas, como se a materialidade da morte se entranhasse numa camada ainda inacessível de mim mesmo. Surpreendi-me com meu distanciamento e frieza. Será que este comportamento é perene? Sentirei o mesmo quando pessoas ainda mais próximas morrerem? Não sei dizer. Pois "O pato, a morte e a tulipa" é um livro para crianças que conta um tanto sobre a morte, que apresenta a morte ao leitor (não necessariamente apenas aos leitores jovens, pois também os adultos podem gostar desta morte - que fala com ironia, que se diverte em acompanhar o pato em suas últimas semanas). O traço de Erlbruch é muito bonito, o texto curto, sem sobressaltos. A filosofia e a cultura amarram o texto. O pato conversa com a morte sobre sua natureza. Entende que quando estiver morto haverá um vazio, um "lá", sem ele, mas que será para o pato também um "não lá", algo que existe a despeito dele, mas está entranhado e definido por ele. É só uma associação besta, mas este belo livro fez-me lembrar de um poema de Wystan Auden onde ele perguntava: "Whither? Where does this journey look which the watcher upon the quay, standing under his evil star, so bitterly envies, as the mountain swim away with slow calm strokes, and the gulls abandon their vow? Does it promise a juster life?" Afinal, para onde aponta esta jornada? É isso o que cada um de nós leva uma vida inteira para descobrir. O livro é bonito, mas este foi um ano ruim. [início 01/06/2010 - fim 24/12/2010]
"O pato, a morte e a tulipa", Wolf Erlbruch, tradução de José Marcos Macedo, editora Cosac Naify (1a. edição) 2009, brochura 24x29,5, 32 págs., ISBN: 978-85-7503-831-4
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Balanço final [31.12.2010]
Este foi um ano complicado, mas ler marcou sempre os melhores momentos, algum descanso na loucura, algum descanso dos aborrecimentos. Li coisas realmente boas, fortes. Li uns seis ou sete bons livros de Javier Marías, notadamente de crônicas, o sujeito sabe ser convincente; encontrei as últimas cositas do Manolo Vazquez Montalbán e do Cees Nooteboom; descobri o poder da prosa de Enrique Vila-Matas; li bons livros de Ian McEwan, Cormac McCarthy e Alejo Carpentier; diverti-me com a prosa descompromissada de Andrea Camilleri e seu adorável comissário Montalbano. Este foi um ano em que li muitos livros em espanhol (29% do total) e que voltei a ler romances policiais (mas os livros de Camilleri oferecem algo mais ao leitor que apenas escapismo). Foi o ano que passei a usar os portais de sebos Abebooks e Iberlibros para garimpar o que me falta na biblioteca, que cousa boa! E foi o ano do lançamento de Arquimedes, um romance coletivo que produzimos cá em Santa Maria, que vendeu e vai vender bem mais ainda. Eis que em 2010 foram 130 livros lidos, quase o mesmo que no ano passado. Foram 28 romances, 18 de crônicas ou ensaios, 14 de perfis ou memórias, 12 romances policiais, 11 novelas, 11 de contos, 9 cartuns ou mangás, 7 de poesia, 6 de gastronomia, 5 infanto-juvenis, 3 didáticos, 3 de aforismos, 2 livros de arte e 1 drama poético (o seminal Filoctetes de Sófocles, que belo livro). No ano que vem quero reler alguns clássicos, como as Metamorfoses, a Ilíada e a Odisséia; voltar a passear pela Mancha com Don Quixote; retomar algum Shakespeare; mergulhar em alguma mitologia, celeiro dos homens; reaprender algo com Joyce, claro; e voltar aos caminhos de Swann e Guermantes, com Proust. É tempo! São projetos de comemoração de meus cinquenta anos. Veremos. Se é que você me acompanhou até aqui boas festas, felicidades mil. Vamos a ver o que se passará de verdade em 2011. Vale.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

ligeiramente fora de foco

Vi este livro nas prateleiras da CESMA e fui arrebatado pelas fotos ao folheá-lo (no início quase displicentemente, confesso). O livro reúne uma centena de fotos de guerra e um texto relativamente curto do autor das fotos: Robert Capa. Ele é lembrado por muitas coisas: foi co-fundador da agência cooperativa de fotografia Magnum e produziu centenas de fotos ao permanecer na linha de frente de todas as guerras possíveis entre os anos 1935 e 1954 (quando pisou em uma mina terrestre na Indochina e morreu). Uma de suas fotos mais famosas registra um miliciano da guerra civil espanhola no exato momento em que tomba alvejado de morte. Em "Ligeriamente fora de foco" ele conta parte de sua vida nos anos da segunda grande guerra, principalmente aspectos rocambolescos de como conseguiu tornar-se correspondente de guerra e estar quase sempre na frente de batalha mesmo sem contar inicialmente com um passaporte oficial (ele era Húngaro, um país que naquela época já estava tomado pelos nazistas). O ritmo do texto lembra o tom dos livros de memórias de David Niven, principalmente quando ele fala dos acasos da vida, de como a vida é mesmo sempre surprendente até para o mais neurótico dos estrategistas mentais. Este tom é de farsa, como se o autor quisesse (inconsciente ou deliberadamente, vá se saber) que não confiássemos totalmente em sua descrição dos fatos, de sua versão dos acontecimentos. Uma brincadeira que mantêm o leitor fisgado pois com isto tudo o que é contado parece mágico, como um conto de fadas macabro. O impacto desta técnica narrativa talvez não incomodasse tanto quando o livro foi lançado, quando o heroísmo e a maluquice na guerra era algo que provocava mais inveja nas pessoas do que hoje. Atualmente suas histórias me parecem anacrônicas (mais acostumados com os horrores de qualquer guerra não rimos tanto de um sujeito que conta com a sorte o tempo todo e só se preocupa verdadeiramente em como gastar seu dinheiro em bebidas, em como se hospedar em hotéis caros quando se afasta do front, em como viabilizar seus encontros amorosos. A memória é sempre seletiva. De qualquer forma o texto é movimentado e bem escrito. Acompanhamos Capa dos Estados Unidos a Inglaterra, de lá para o Norte da África, ao sul da Itália e finalmente ao desembarque na Normandia, no mítico dia D. As fotos são realmente boas. Quando a guerra termina um fotógrafo como ele não tem muito o que fazer (a não ser procurar outra, claro, pois morrer de tédio é impossível). O livro inclui ainda uma boa introdução de Richard Whelan e um prefácio de Cornell Capa (irmão mais novo de Robert). [início 15/11/2010 - fim 19/11/2010]
"Ligeiramente fora de foco", Robert Capa, tradução de José Rubens Siqueira, editora Cosac Naify, 1a. edição (2010), capa-dura 16x23 cm, 296 págs. ISBN: 978-85-7503-950-2

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

don segundo sombra

Tive sorte de achar esta edição de bolso de "Don Segundo Sombra", de Ricardo Güiraldes. Ela não é completa como a edição crítica editada pela Unesco há tempos, mas eu não tinha coragem de carregar aquele tijolo em papel bíblia por aí para tentar ler. Bueno. Este é um clássico argentino, publicado originalmente em 1926, e rivaliza com o poema Martín Fierro (de José Hernández, que nunca li, confesso), a progenitura do arquétipo do gaúcho em livro. É um livro gostoso de ler, apesar de ter palavras e termos com as quais realmente não estava familiarizado (o fato desta edição incluir um pequeno vocabulário e algumas notas técnicas ajudou um bocado, mas eu tive de me socorrer naquela edição coordenada por Paul Verdevoye). "Don segundo sombra" é um Bildungsroman (romance de formação) típico. No início do livro o narrador é um rapazola orfão, que vive sob os cuidados de duas tias e de pequenos trabalhos em uma cidadezinha perdida no interior argentino. Impressionado com a passagem do lendário Don Segundo Sombra por sua cidade, decide-se tornar um gaúcho, um homem do campo. Don Segundo sombra é um experiente "resero", sujeito sem patrão fixo, que viaja de campo a campo , de estância a estância domando cavalos selvagens, reunindo e tratando o gado, um sujeito identificado com a vida dura no campo, homem forte, física e moralmente. Acompanhamos como o rapaz parte em aventuras pelo pampa argentino tendo Don Segundo como padrinho. O rapaz tem experiências de toda sorte, com a geografia e o relevo, com os animais e os homens; ele aprende a conhecer os sinais do tempo, a aceitar a vastidão dos prados, a se reconhecer na dura lida da vida, a aprender que há fatalidade e destino também na vida simples de seus iguais. Com o tempo deixa de ser neófito, tnas palavras de Güiraldes "torna-se mais que homem, torna-se gaúcho" (este livro deve ser mesmo caro aos argentinos - e aos riograndenses cá do Brasil também, como não?). Há passagens muito legais, como o de um rodeio de milhares de cabeças de gado bruto, as aventuras e os perigos em uma velha estância junto ao mar, ou as histórias de fantasmas e bruxaria contadas por Don Segundo nas noites de paragem. E um livro menos épico e menos pretensioso que um "Grande Sertão: Veredas" por exemplo, mas tem alguns paralelismos com ele. Qualquer sujeito que goste de histórias gaudérias ou curiosidade sobre as diferenças regionais brasileiras vai se divertir muito com este livro. Vale. [início 13/12/2010 - fim 16/12/2010]
"Don Segundo Sombra", Ricardo Güiraldes, Centro Editor de America Latina, 1a. edição (1992), brochura 11x18,5 cm, 217 págs. ISBN: 950-25-2609-0

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

seré amado cuando falte

Javier Marías sabe contar e inventar histórias (como poucos, não me canso de recomendá-lo), mas também sabe observar o mundo real e interpretá-lo. Bem sabemos que a literatura pode salvar - e também condenar - um sujeito. Marías é um legítimo "antena da raça", como dizia Erza Pound dos poetas geniais, que antecipam uma forma, uma voz, um ritmo, um conceito. Suas crônicas têm algo da conversação erudita, mas sem pedantismos, e também da conversação informal, mas sem bravatas, já que ele argumenta justamente para levar o leitor a pensar e não para marcar pontos mentais, não para vencer algum debate de mesa de bar. "Seré amado cuando falte" reúne 104 crônicas publicadas em jornal no período que vai de dezembro de 1996 a novembro de 1998. São crônicas antigas, mas a grande maioria delas não perderam o vigor, pois ele fala de temas que são perenes, mesmo transportando-os para o Brasil que inicia a segunda década do século XXI. De certa forma a Espanha do final dos anos 1990, descrita e comentada por Marías, tem algo com este Brasil ufano dos últimos anos, onde qualquer paspalho, orgulhoso de nunca ler jornais ou abrir um livro sério, arrota que o Brasil é uma potência, que a Europa e os Estados Unidos vão se curvar ao jeito brasileiro de ser. Quem acompanha as cousas da Espanha sabe dos problemas econômicos e sociais que tem passado após uns bons anos de felicidade geral. Como é fácil ser tolo. Bueno, Javier Marías sabe ser ranzinza, mas pontua, com muita ironia e precisão, os temas que lhe cabem: a literatura e a arte, a política e as relações entre as pessoas. Sempre me surpreendo com sua coragem e honestidade intelectual. Como magistral ficcionista que é seu texto transborda invenção, descobertas linguísticas, histórias que enriquecem e deleitam o leitor. São poucos os articulistas e escritores brasileiros de nosso tempo que mantêm tal equilíbrio e qualidade entre sua produção ficcional (seus romances principalmente) e sua produção factual (suas crônicas). Que sujeito! E ainda me cabe o registro de que graças aos serviços eficientíssimos do Abebooks haverá muitos Marías por aqui no ano que vem. Vale. [início 16/11/2010 - fim 13/12/2010]
"Seré amado cuando falte", Javier Marías, editora Alfaguara, 1a. edição (1999), capa-dura 14x22,5 cm, 345 págs. ISBN: 84-204-4188-0

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

santiago

Há livros que lemos por compulsão, sem planejamento prévio. Encontrei este "Santiago" na feira do livro de Porto Alegre. Como este é um ano Xacobeo (como dizem os gallegos) achei por bem experimentá-lo. A idéia segue aquele padrão já consagrado: um sujeito decide dar um tempo na vida e caminhar pelo norte da Espanha, em perigrinação até Santiago de Compostela. O que importa é o "caminho", não a motivação, não a cidade ou a religiosidade, não o sujeito que caminha. Todos os anos milhares de pessoas fazem isto, pessoas de todos os cantos, idades, condição financeira, porque não o fazermos também? Este foi o caso do autor, Gentil Corazza, um porto-alegrense e professor universitário de seus cinquenta e tantos anos. Ele conta os sucessos de sua caminhada, seus vinte e quatro dias e setecentos quilômetros, os encontros e desencontros do caminho. O livro tem boas ilustrações de Edgar Vasques e recolhe os causos emblemáticos do caminho: sua origem, as lendas e histórias, as superações pessoais, os albergues, as bolhas nos pés. Depois que lemos um livro deste tipo não nos espantamos com nada. Corazza inclui algo de ficção no texto, apresentando uma mulher misteriosa cuja caminhada se confunde com a sua, dona de um segredo que é negado ao leitor. Nada muito espetacular. Confesso que prefiro os desvios de Cees Nooteboom, que registrou seus trinta anos de experiências nestes caminhos espanhóis, coletando algo mais que espiritualidade ou mitos, mas Nooteboom é um escritor experimentado, não um neófito. Paciência. Tenho ainda de caminhar por meus livros e seguir em frente. Vale. [início - fim 06/12/2010]
"Santiago: caminhos imaginários", Gentil Corazza, ilustrações de Edgar Vasques, editora Literalis, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 150 págs. ISBN: 978-85-88709-46-1

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

guinada na vida

"Guinada na vida" foi publicado originalmente em 2003 e é o décimo primeiro dos livros de Andrea Camilleri onde o comissário Salvo Montalbano é protagonista. Neste livro ele está cinquentão, algo cansado e desmotivado, deprimido com os rumos polìticos da Itália de Berlusconi e Fini, que pensa em se demitir. Mas o acaso se apresenta, na forma de um cadáver que Montalbano resgata do mar. Da curiosidade inicial sobre a origem do cadáver sucedem reviravoltas frenéticas. Montalbano envolve-se com migrantes extra-comunitários e sente-se culpado por de certa forma provocar a morte de um garoto africano, sequestrado para o mercado de pedofilia europeu. A investigação é conduzida como uma vingança pessoal de Montalbano, sem registro nos canais usuais da burocracia da polìcia. Montalbano é um personagem robusto, que tem seus matizes de humor e sorte, como todos nós no mundo real. Auxiliado por seus imediatos Fazio e Mimí, além de sua amiga sueca Ingrid (o elenco de personagens femininos de Camilleri é muito bom), Montalbano consegue chegar aos responsáveis pelas mortes do afogado e do garoto africano: dois tunisianos sádicos e muito perigosos. Neste livro Montalbano experimenta desconforto físico, seu corpo reclama um tanto da idade. Camilleri sabe dar verossimilhança a um personagem que aprendemos a amar. Movimentado e direto ao ponto. Belo livro. [início 03/12/2010 - fim 05/12/2010]
"Guinada na vida", Andrea Camilleri, tradução de Joana Angélica d´Avila Melo, editora Record, 2a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 221 págs. ISBN: 978-85-01-07017-3

sábado, 4 de dezembro de 2010

el sueño del celta

Comprei este "El sueño del celta" na feira do livro de Porto Alegre. O povo da feira que trabalha com livros importados em espanhol (o Miguel da Calle Corrientes e os distribuidores da Sur e da Maneco) estavam muito animados, pois o livro chegou uns poucos dias depois de seu lançamento mundial, que ocorreu exatamente um mês atrás, no último 03 de novembro. Li em algum lugar que foram 500 mil exemplares nesta primeira fornada, metade para o mercado espanhol e outra metade para o mercado americano (das américas do sul e do norte, grande é este continente). O lançamento em grande escala aproveitou a recente outorga do prêmio Nobel à Vargas Llosa pois fazia tempo que um sujeito que escreve em espanhol não ganhava (o anterior foi Octávio Paz, em 1990). Emendei a leitura deste longo romance com os outros projetos que já havia iniciado (são tantas as leituras de final de ano, este é mesmo o único jeito de se seguir em frente). Não posso dizer que gostei deste livro. Trata-se de um romance histórico, onde Llosa conta os sucessos da vida de um sujeito chamado Roger Casement, um irlandês que foi dos primeiros a denunciar os crimes cometidos pelos exploradores europeus na África, notadamente no Congo Belga (ou Zaire, ou a atual República Democrática do Congo). Ele também foi dos primeiros a denunciar - na condição de cônsul - os crimes cometidos contra os indígenas da região de exploração de borracha na amazônia peruana e colombiana do início dos anos 1910. Além destes lugares ele foi cônsul inglês em Lisboa, no Rio de Janeiro e no Pará. Tornou-se cavaleiro do Império Britânico por seus serviços prestados. Nos últimos anos de sua vida engajou-se na luta pela independência da Irlanda e foi condenado a forca após o desastre do levante da páscoa irlandês de 1916 (propositalmente o livro terminou de ser escrito no 19 de abril de 2010, exatamente 84 anos após esta tentativa frustada de independência irlandesa - Vargas Llosa sabe um tanto de marketing). O livro é dividido em duas series de histórias que se alternam. Em uma acompanhamos a biografia romanceada de Casement. Começa com sua educação formal, sua inserção no elitista corpo diplomático inglês do final do século XIX e sua primeira viagem à Africa, no grupo de exploradores comandado por Henry Stanley, um dos sujeitos que grangearam fama no processo de colonização da África. Os capítulos seguem até os dias que antecedem a primeira guerra mundial, suas viagens ao interior da Irlanda, suas gestões com os revolucionários irlandeses nos Estados Unidos e com os membros do alto comando alemão, de quem pretendia receber ajuda na luta pela independência. Os outros capítulos tratam dos últimos dias de Casement na prisão, desde quando recebe sua sentença de pena de morte, reencontra alguns amigos, conversa com o sheriff da prisão e segue até os momentos que antecedem sua morte. Trata-se de um personagem interessante, pouco conhecido e ambíguo o suficiente para merecer esta espécie de resgate histórico promovida por Llosa, mas ao mesmo tempo o sujeito retratado no livro é de uma ingenuidade e/ou estupidez atroz, que se deixa enganar pelo serviço de contra-espionagem inglês de formas quase bisonhas. Como um sujeito como ele pôde ser umas das principais lideranças de sua época e acreditar que uma insurreição contra os ingleses daria certo? A campanha de difamação contra Casement, promovida pelo governo inglês, aparentemente diminuiu o reconhecimento dele como uma liderança importante na independência. Apenas em meados dos anos 1960 seus restos mortais foram levados a Irlanda e seu nome incluído no panteão dos heróis da pátria. Talvez os verdadeiros revolucionários tenham de ter mesmo uma cota de loucura maior que a média, além de uma completa inaptidão para a realidade, por falta de sabedoria prática, vai-se saber. Como panfleto, como livro dedicado a incentivar uma causa nobre, "El sueño del celta" até funciona, pois gostamos de conhecer personagens assim, mas como literatura, algo que assombre e estimule o leitor, este livro deixa muito a desejar. Certamente há coisas mais poderosas de Vargas Llosa para se ler. Preciso voltar a elas um dia destes. [início 17/11/2010 - fim 03/12/2010]
"El sueño del celta", Mario Vargas Llosa, editora Alfaguara, 1a. edição (2010), brochura 15x24 cm, 455 págs. ISBN: 978-987-04-1644-9

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

em alguma parte alguma

Ferreira Gullar é um sujeito de seus oitenta anos que ainda "inventa o que dizer", que compreende que a vida provisoriamente permite que ele encontre poesias dentro de si. Este "Em alguma parte alguma" é seu mais recente livro de poemas publicado (o livro saiu um par de meses depois do comunicado de que ele vencera o prêmio Camões neste ano, o ano de seus oitenta anos, cousa boa). A edição é muito bem cuidada. O livro inclui uma bibliografia completa de sua obra e dois textos assinados por especialistas em Gullar: Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin. Os poemas são variados, na forma e na extensão. Há temas recorrentes: a gênese mesma da poesia, a desordem, os sentidos, a natureza, gatos, ossos, memória, a rua duvivier, a podridão e os ossos, a pedra. Uma série longa, com onze poemas, fala do universo e da ciência, das escalas das coisas no mundo. Uma outra, menor, com seis poemas, fala de artistas plásticos e outros poetas. Um poeta forte sempre fala de outros poetas, mesmo quando não explicita a conversa. Alfredo Bosi cita em seu prefácio como Gullar se reinventa de tempos em tempos, como se inquieta e não repete fórmulas em seu ofício, mas, ao mesmo tempo, cita como estes dois temas, que ele chama de "visão cósmica" e "evocação dos mortos", são de longa data temas caros à Gullar. A memória da poesia é algo que se deve construir desde pequeno, não é fácil formá-la se já não vemos o mundo com os olhos de menino. Paciência. O livro tem vários poemas que me tocaram, que reli gaiato, coisas realmente poderosas, que fazem um sujeito pensar na vida, com calma, sem açodamentos, como sempre deve ser. Em algum ponto ele nos lembra que "de tais espantos somos feitos." Que espanto? Cada leitor vai encontrar o seu. Gullar encerra o livro com dois poemas mais longos, que falam também da morte: um sobre Rainer Maria Rilke, um passeio do poeta e da morte pela Alemanha de Rilke; um outro sobre uma viagem de volta a Santiago do Chile, lugar de lembranças boas e lembranças bem amargas, cruéis, que termina com algo que lembra uma frase latina que eu gosto muito (nec spe, nec metu). Um assombro. Muito bom mesmo. Por fim, como se não fizesse parte do livro, encontramos um poema manuscrito ("uma corola" se chama o pequeno). Dele se tirou, se desabrochou, o nome do livro inteiro: em alguma parte alguma. Um poema de onde se pode inferir que sempre haverá vida desabrochando sem pudor em algum lugar, um poema onde se diz que a potência de vida fulge sempre em algum lugar. Ulalá. Que grande livro. [início 03/11/2010 - fim 30/11/2010]
"Em alguma parte alguma", Ferreira Gullar, editora José Olympio, 1a. edição (2010), brochura 13,5x21 cm, 142 págs. ISBN: 978-85-03-01095-5

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

mil-folhas

Este delicado livro, muito bem editado, inclui dezenas de ilustrações e conta uma história do doce. Trata-se de uma festa para os sentidos. As imagens são do tipo que estimulam nossa memória, especialmente a memória afetiva e a memória gastronômica, aquelas de nossos primeiros contatos com os doces, com as guloseimas que consumíamos quando crianças - e continuamos a consumir, talvez com culpa desta vez. Lucrecia Zappi sabe não aborrecer seu leitor com detalhes, mas também não deixa de ser muito precisa, informativa, estimulante, indo do mel e do açucar (o sal indiano, vejam só que nome mais exótico) a suas variadas encarnações: na forma de doces, bolos, tortas, biscoitos, sorvetes (e o que mais um bom doceiro, um bom quituteiro, souber inventar). É um livro para se saborear em uma tarde vagabunda qualquer, enquanto nos decidimos se vamos experimentar um quindim, um doce de leite, uma bomba de chocolate ou outras delícias. Lendo este "mil-folhas" nos percebemos "drowning in honey, stingless", como se deve sempre ser. [início - fim 27/11/2010]
"Mil-folhas: história ilustrada do doce", Lucrecia Zappi, editora Cosac Naify, 1a. edição (2010), capa-dura 24x27 cm, 96 págs. ISBN: 978-85-7503-689-1